Labirintos Digitais

Labirintos guardam enigmas dobrados sobre outros. Mal saimos de um labirinto e esquecemos o instante que sentimos o vazio nos interstícios das dobraduras. Centro do labirinto, lugar onde a vista abarca a multiplicidade de avessos.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Palavras Sideradas

Gosto de atrelar as palavras ao seu significado etimológico e deixo que sigam para cumprir um destino. Não guardo palavras, a escrita me acolhe. E é tudo que sou, e mesmo este tudo, pode virar poeira a qualquer momento.
Aqui, começo um desenho oculto nas linhas que sulcam o céu, traçadas com a imaginação dos siderados que por elas guiaram as vidas com esperança e medo dos abismos ao fim de cada viagem.
Para todos os que têm um mapa de navegação na alma, aqui está o início, do jeito como os antigos cartografavam e imaginavam linhas nas constelações, quando cada viagem era traçada através dos dedos que desenhavam no ar e apontavam o rumo nas linhas das estrelas.

domingo, outubro 29, 2006

Terço




No vôo iniciado, milhões de fios destecendo poeira na luz, amarelos, buscam qualquer azul ou verde de mar aberto. Ondas das asas fazendo história nos gestos esquecidos. Cientistas não sabem acenos ou bilhetes. Este homem sabe ir comigo até praias, dunas, desertos e cidades. Um ponto longe, longe que se chega depois de oito milhões de buritis. Ele vai comigo, atravessa ventos e chuvas, apenas para existir diferente dos que não resistem ao fascínio da terra. Depois, exaustos das ondas arrebentando asas na pele, costas, dormimos inocentes, onde o corpo acolhe gente de bem. Quando sentamos à beira das linhas, os pés imersos, observamos o fascínio grudado nas árvores, não falamos da fome e nem nos alimentamos de raiz. Devoramos as máscaras que entalhamos e quando o ponto longe já é perto, ele volta comigo, atravessa desertos, tempestades de terra e sal. No vôo retornado, milhões de fios destramam a gente. Este homem vive no que há de mais amar em mim.

Às vezes rumo sem ele para o longe, apenas para vê-la escondida na ponta da alma, onde risca órbitas de borboletas. Sento á beira das linhas para cuidar em segredo. Enquanto espero, balanço os pés e propago ondas no branco. Quando ela surge do meio das espumas é festa em mim. O vestido estampado que teceu com os fios de Ariadne, que recolhi a todo transe, postados fio a fio a cada dia que a deixei, anteface vestida indiferente e publicado lá, minguando, roto de vento salgado, quase nuvem, exigia palavra na garganta, desassossegando meu silêncio. Quem essa mulher que me atravessa? Ela arrasta distraída o arco e as flechas envenenadas que recebeu do deus sonso e dobrado, foi Chico quem anunciou feito tudo: poetas como os cegos podem ver na escuridão .

Ferida nos flancos e nas coxas, ela nega paixão, há em sua fronte uma coroa de heras. Na ponta da alma, onde exila, chagas exalam dor. As borboletas são fingimento, o cheiro que desprende de cada ferida aberta, apenas as sublimidades podem suportar sem náuseas.

Um tempo, esperei até que seu corpo cansasse e seus olhos desistissem no silêncio denso, fui até a ilha e toquei as chagas que nunca fecham, achava que podia cauterizar a carne morta que ela caligrafa na existência, só porque pensa que sem o cheiro da dor já não sabe respirar. Ela repugnou minhas mãos. O deus sonso a prevenira e gravou o selo nas setas com veneno. Quando tenho medo, ando com os pés descalços e desarmo as ciladas para que ela não tenha certeza do costado atravessado, no dia que mirou do escuro no alvoroço de mim.
Quando o pensamento dela me chama, ela exige. Quase pude tocá-la no instante que me adivinhava observando a espuma. -Existe poesia em por favor? Quis atravessar a paixão negada, roubar o desejo do corpo e morar naquela doçura de perguntar, arrancar o cerne na resina do osso, roer a violência dura das paixões até o limite do insuportável, onde toda palavra sussurra quase nada, de querer dizer tão e tão perto e não conseguir palavralma. Depois, acolhê-la em meu colo, quando o amor viesse tranqüilo na inocência dos dias.

Dia vem, respiro a vertigem nas trilhas verdes azuis e com as cores que sobram, arrasto poeira às brasas para que ela não esqueça de tecer, enquanto anda distraída e arrasta arco, flecha e ausência.

Quando a dor vem do desejo de não sentir a dor, tudo é desejo de não sentir. Quando ela permitu, assentei-me na terra, espalhei pó sobre a cabeça e cobri a face. Nada pronunciei durante três tempos. E este era o meu gesto de lamentação, e não chorar era mostrar força para acompanhá-la enquanto a dor era muita. Disse a Deus que ela era Seu sopro de vida e que eu era do mesmo barro com o qual nos criou e pedi forte que a curasse. Depois adoeci dos olhos. Rumei do longe sem saber onde ir.

Ainda a vigio sem que saiba. Alimento círculos de fogo para que a noite morra acesa. No longe, até ela pode congelar de frio, não sei se estamos febris e doentes de ser. Depois, tomo conta para que os bichos e as lendas não construam casulos em seus olhos e nada digo aos seus sonhos. Adormeço.

Talvez a face de Deus voltasse a pairar sobre as águas, ressuscitadas, as aves do amor presas na garganta trouxessem vermelhos insuspeitados, como os que se tingem nas cidades do oriente, e fortíssimo, o azul delicado de flutuar esgarçado, romperia o espaço sereno do mundo dentro, onde meu farol acende para dentro o impronunciável do amor em meus olhos.
Não fossem os olhos grandes e ingênuos do homem que habita no amor em mim e os fios destecendo amarelo na poeira do vento que nos chama e chama, com a chuva intermitente das ondas arrebentando asas nas costas. Não fosse essa piedade imensa que sentimos da humanidade que não morreu e que sentimos nos caules desbotados das flores e borboletas de giz colorido desenhando as estações, flutuando desencanto, usadas para tentar explicar o pranto que já seca suas gargantas no desespero de fome, de amor, desmanchava as linhas com as pontas dos dedos, distraía os olhos cansados. Não fossem os olhos deste homem que me espera, desmanchava o longe, apenas mais um gesto esquecido.
Mas,seus olhos me abismam e costuro as almas secas e as sopro pedindo a Deus que não seja pecado pretender respirá-las.

terça-feira, setembro 12, 2006

Desabsurdos: um recorte


Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Caio Fernando Abreu

quinta-feira, junho 15, 2006

segunda-feira, junho 12, 2006

Azul-Chumbo-Vermelho-Sal


Náufragos
é para vocês que escrevo
frases ou palavras hoje os signos vencem.


Barcos avariados
cais de inocências não permitidas.

Não sei o ritmo nas ondas
no vendaval das marés

o sal escreve enigmas
não de frases ou palavras
hoje o que não sei me vence.

Naufrágios nos silêncios
quase sussurram verbo azul
chumbo como aves
rarefeito ar

de cortar
sabem do sal
na carne aberta
esculpindo minha boca

adentro

Pousa Pulsa
verte vermelho
lambe cabelo na face
a boca mistura

areia-sangue-canto-cortado

no silêncio escuro
rouco rasurado
o sal filigrana
tortura e lambe
memória

tudo em mim